Goiana: uma cidade afro-brasileira no norte de Pernambuco

Por: David Borges de Fraga[1]

Apesar de bastante reduzido, o número de africanos escravizados que aparece no censo de 1872 deveria ser bem maior, uma vez que sonegar a procedência do cativo tornou-se a estratégia comum entre os senhores, em meados do século XIX, para não levantar suspeitas sobre algo adquirido na ilegalidade. Isso dificulta uma estipulação mais precisa sobre a razão de africanidade na comarca de Goiana, ou seja, do número de africanos em relação a cada 100 escravizados nascidos no Brasil ou, nos termos da época, crioulos. De todo modo é de se supor que entre os escravizados de Goiana, por volta da década de 1840, o número de africanos poderia ser maior em relação ao de crioulos. Resta sempre lembrar que, entre 1826 e 1850, 89.038 africanos desembarcaram em Pernambuco.[2]

Parte esmagadora desses africanos que aparecem no censo de 1872, além dos outros sonegados, escravizados ou já libertos, veio da África Central, que incluía, no geral, regiões como Angola, Congo, Benguela e, do outro lado do continente, Moçambique.[3] Durante trezentos anos Pernambuco recebeu pesadamente africanos vindos dessa região, com forte predominância das duas primeiras. Dos 853.835 africanos desembarcados nos três séculos de tráfico, 666.949 vieram da África Central, embarcados nos portos de Cambinda, Mpinda, Luanda, Malimbo, Loango e Benguela, portos que, sobretudo durante o século XVIII e XIX drenaram, entre outros, povos como os bakongo, falantes do kikongo e também os mbundu e ovimbundu falantes, respectivamente, do kimbundo e ovimbundo.[4]

Pelo menos desde o século XVI que a região da comarca de Goiana recebia africanos dessa região. Durante o século XVIII, escravizados oriundos da África Ocidental, em particular da Costa do Benin, também desembarcaram nas praias goianenses. Comerciantes locais estabeleceram contato direto com portos africanos das duas grandes regiões reprodutoras de escravizados no decorrer século XVIII, participando do comércio de pessoas sem passar pelo crivo de Recife, o que demonstra, portanto, o importante papel de goianenses no circuito atlântico de escravizados. Os contatos desses negociantes se deram tanto na "Costa do Marfim", quanto na região de Angola, cujas relações já eram estreitas há um século mais ou menos. Apesar desse contato direto com portos situados na África Ocidental, o percentual de centro-africanos desembarcados até mesmo no século XVIII é esmagadoramente maior, embora num dado período desse século tenha chegado uma boa leva de africanos oriundos da Costa do Benin, de portos como o de Uidá, falantes de línguas que participavam da família yourubá.[5]

No século XIX Goiana ainda manteve-se como porto importante de desembarque de africanos consolidando-se ainda mais depois de 1831, ano da primeira proibição do tráfico atlântico de africanos escravizados. Com a lei os portos das grandes cidades foram sendo trocados por ancoradouros distantes de holofotes, ficando assim mais fácil de despistar as autoridades que, contraditoriamente, cada vez mais ia estabelecendo maneiras de conviver com a ilegalidade. Goiana oferecia as condições ideais para a operação que era complexa, tais como praias seguras e rasas o suficiente para fundear o navio, além da existência de propriedades por perto cujos donos assumissem uma perspectiva de um senhor - traficante.[6] Em 1830, por exemplo, Goiana foi palco da grande apreensão da escuna Clementina, abordada pelas autoridades provinciais que descobriram um carregamento de 188 africanos.[7] Houve, porém, muitos outros. Aliás, quem nos conta sobre um é o africano Camilo que chegou a Goiana ainda criança.

Camilo era casado, natural do Congo, agricultor e morador do Egenho Pirany, situado na comarca limítrofe de Itambé. Aos seus quarenta anos, resolveu entrar com uma Ação de Liberdade afirmando que teria chegado ao Brasil depois da lei de 1831. Muitos anos depois, Camilo contestava sua condição de escravizado e requeria perante a justiça sua liberdade usando como estratégia o fato de que teria desembarcado ilegalmente no Brasil, logo, portanto, depois de 1831. Disse não saber do nome da embarcação que veio da África, mas desembarcou, supostamente aos 7 anos, numa praia de nome Atapuz e que por volta da meia noite foi levado para o Engenho Itapirema, propriedade do Major Paulino "que o trancou na casa de purgar com seus companheiros em número talvez de noventa."[8]

Desembarques como esse contado por Camilo foram recorrentes no período do tráfico ilegal (1831-1850). As outras levas desembarcadas, aliás, também possuía crianças como ele.[9] Camilo foi o nome que deram a ele no ato de batismo em Goiana. Quarenta anos se passaram e ele ainda lembrava que depois de ter saído do engenho Itapirema, foi levado a um sobrado de um português chamado Manoel Gonçalves, onde foi batizado por um padre de "estatura alta e branco". Depois foi vendido junto com outros companheiros de viagem, segundo informou Camilo em 1874. Em suas lembranças constava também que um filho do comerciante português, "Augustinho de tal" foi padrinho dele e de mais dois "malungos"[10]: Luiz e Justino. Outro filho, "Sérgio de Tal", já falecido no momento, foi o padrinho de Abraham e Manoel que também foram levados junto com Camilo ao sobrado para o batismo. Estes dois últimos ficaram em Goiana enquanto que Camilo, Luiz e Justino foram para o Engenho Perony, situado em Itambé. Justino e Luiz, que ficaram no mesmo engenho que Camilo, já eram falecidos em 1874.

De acordo com Marcus Carvalho não é absurdo pensar que entre 1831 e 1850, 50.000 africanos escravizados vieram para Pernambuco ilegalmente.[11] Os africanos centrais formavam quase a totalidade desse número.[12] É de se presumir, portanto, que muitos meninos "camilos" congoleses desembarcaram em Goiana nesse período. Assim como muitos Abraham, Manoel, Luiz e Justino. Todas essas questões nos levam a pensar sobre como centenas de milhares de africanos, na larga noite dos três séculos de escravidão, conseguiram reinterpretar antigos conceitos, recriar identidades com base nos novos contextos específicos zona da mata norte de Pernambuco, além de repensar crenças e tradições há muito tempo difundidas nos seus lugares de origens.

Uma pergunta: tratando-se, em especial, das últimas levas de africanos chegados em Goiana entre as décadas de 1840 e 1850, em especial os bantu, uma vez tendo acesso à vida citadina, ou até mesmo dentro das senzalas, puderam eles encontrar um ambiente político-cultural que os remetessem e/ou relembrassem suas tradições, valores e práticas? De fato, parece-nos que estas últimas levas de africanos conseguiram assimilar-se mais facilmente, ou não tiveram grandes dificuldades em assimilação, devido à existência de uma cultura local cujas raízes estavam na África Central, difundida em terras goianenses já há pelo menos um século.

Como bem ressaltou Silvia Hunold Lara, é "praticamente impossível", diz-nos a autora, estudar a história da escravidão sem antes nos ater ao modo como "tradições valores e práticas trazidos da África foram (ou não) incorporados à experiência do cativeiro em terras americanas". [13] A ressalva de Silvia Lara nos encoraja a se debruçar sobre o assunto no norte da província de Pernambuco. É nesse sentido que trilharemos, noutros textos, uma investigação sobre uma cultura local com fortes referenciais centro-africanos. Propomos uma análise sobre as resignificações culturais empreendidas no norte de Pernambuco por esses sujeitos escravizados vindos do além mar e também por seus filhos nascidos no Brasil, escravizados, libertos ou livres que compartilharam de uma gramática cultural bantu "experenciada" em Goiana.

[1] Professor de história formado pela Universidade Católica de Pernambuco. Tem como temas centrais de estudos, a história da escravidão e da liberdade no norte de Pernambuco, em especial na Comarca de Goiana, durante o século XIX. davidborgesgpe@gmail.com

[2] Os números foram retirados da plataforma online Slaver Voyage. Ver: www.slavervoyage.com

[3] A professora Beatriz Brusantin identificou a presença desses africanos e dos seus costumes na comarca de Nazareth e também sugeriu que formavam a maioria em termos demográficos. Para termos uma ideia da presença marcante dos centro-africanos em Goiana, basta dá uma olhada nos testamentos, fugas e cartas de alforria, além de documentações avulsas como, por exemplo, a da Secretaria de Segurança Pública, e veremos que a maioria das terminologias que designam africanos ligava à África Central, tal como "Congo", "Angola", "Benguela", "Cassange", "Moçambique", etc. Ver: BRUSANTIN, Beatriz Miranda de. Ongombe Yange Yeyi: no terreiro do cavalo marinho pernambucano (séculos XIXI e XX) IN: Escravidão e cultura afro-brasileira: temas e problemas em torno da obra de Robert Slenes. / Gladys Sabina Ribeiro... [et al.] (orgs). - Capinhas, SP: Editora da Unicamp, 2016

[4] Sobre o número de africanos centrais escravizados vindos para o Brasil, podendo analisar separadamente Pernambuco, ver: MILLER, Joseph C. África Central durante a era do comércio de escravizados de 1490 a 1850. IN: Diáspora negra no Brasil / Linda M. Heywood (organizadora); [tradução Ingrid de Castro Vompean Fregonez, Thaís Cristina Casson, Vera Lúcia Benedito].-1.ed.., 1ª reimpressão.- São Paulo : Contexto, 2009 p.29-81

[5] Sobre as ligações de negociantes goianenses com portos africanos no século XVIII, ver: LOPES, Gustavo Acioli. Negócio da Costa da Mina e comércio atlântico: tabaco, açúcar, ouro e tráfico de escravos. Pernambuco (1654.1760). Tese (Doutorado em História) São Paulo: FFLCH/ USP, 2008.

[6] Além da Barra de Catuama e do seu rio principal, o Rio Goiana, a Comarca de Goiana era formada por outros como o Megaó, Itapissuma, Capibaribe-mirim, Tracunhaém e Santo Elias. Possuía praias, bocas de rios e enseadas: tudo isso era utilizado pelos traficantes para o desembarque e distribuição da carga ilegal de escravos. Segundo Marcus Carvalho, "não era qualquer lugar que servia para ancoragem de um navio do qual seria desembarcada uma carga delicada, complexa e que exigia cuidados especiais. E também vale ressaltar que descarregar um navio é diferente de carregá-lo". Ainda segundo o autor, o ideal "era que o porto fosse perto das propriedades agrárias produtivas ou então das povoações mais importantes, onde havia compradores certos, ou onde estavam os consignatários da carga", ver: CARVALHO, Marcus. J. M. de. O desembarque nas praias: o funcionamento do tráfico de escravos depois de 1831. Revista de História, São Paulo, n. 167, p. 223-260,julho/dezembro, 2012, p.231.

[7] Clementina foi um dos mais conhecidos entre os navios apreendidos na costa pernambucana. Cyrya Fernandes explica que constam informações produzidas pelo parlamento inglês que a embarcação teria saído de Calabar, atual Nigéria, no dia 16 de dezembro de 1830. Seu destino era Martinica, no caribe, mas terminou por aportar em Pernambuco no dia 19 de janeiro de 1831. Ver: FERNANDES, Cyra Luiana Ribeiro de Oliveira. Os africanos livres em Pernambuco, 1831 - 1864 / Cyra Luciana Ribeiro de Oliveira Fernandes. - Recife. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Pernambuco. CFCH. História, 2010. p.35

[8] O caso de Camilo foi analisado por Marcus Carvalho num artigo intitulado: O desembarque do menino conguês Camilo em Pernambuco, ou, o comércio transatlântico de crianças escravizadas depois de 1831. O texto faz parte dos anais do 8° encontro Escravidão e liberdade no Brasil Meridional. Tivemos acesso ao processo completo: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE PERNAMBUCO. MEMORIAL DA JUSTIÇA. Itambé, Ação de Liberdade 1874.

[9] IDEM.

[10] No que tange ao significado da palavra malungu e sobre como africanos centrais reinterpretaram velhos conceitos e práticas há muito difundidas nos seus lugares de origem, ver: SLENES, Robert. "Malungu, Ngoma Vem!": Africa Encoberta e Descoberta no Brasil", Revista USP, 12 (1991-92): 48-67

[11] O autor em questão deixa claro que os dados para esse tipo de estimativa "são apenas indicações de possíveis tendências, e não estimativas precisas, com cinco por cento de margem de erro, como se costuma fazer em estudos mais exatos, baseados em fontes mais precisas", ver: CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no Recife, 1822-1850 / Marcus J. M. de Carvalho. - 2. Ed. - Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2010, p.111 e 136.

[12] Ver a plataforma digital: www.slavervoyage.com

[13]LARA, Silvia Hunold. Quem eram os "negros do palmar".IN: Escravidão e cultura afro-brasileira: temas e problemas em torno da obra de Robert Slenes. / Gladys Sabina Ribeiro... [et al.] (orgs). - Capinhas, SP: Editora da Unicamp, 2016, p.57