Discurso pronunciado por ocasião das homenagens a Frei Caneca realizadas em 13 de janeiro de 2018 no Museu da Cidade do Recife/Forte das Cinco Pontas
Por: George F. Cabral de Souza[1]
Em 13 de janeiro de 1825, um corpo de homem, crivado de balas, jazia ensanguentado e sujo no chão da Igreja do Convento de Nossa Senhora do Carmo do Recife. Apressados, os frade carmelitas providenciaram que os despojos fossem sepultados o mais rápido possível. Temiam que o corpo fosse profanado, da mesma forma que ocorrera alguns anos antes com o Padre João Ribeiro nas terras do engenho Paulista. Era preciso atender aos preceitos canônicos da Igreja, mas também era fundamental inumar os restos em local que não pudesse ser facilmente varejado. O local escolhido foi, segundo uma tradição, uma das paredes do coro superior do grandioso templo recifense. Entre as pedras daquela grossa parede repousou incógnito Frei Joaquim do Amor Divino Rabelo Caneca, ou simplesmente Frei Caneca, o maior de todos os mártires pela independência e pela democracia da história do Brasil.
Frei Caneca nasceu no Recife em 1779, filho do tanoeiro português Domingos da Silva Rabelo e de Francisca Alexandrina de Siqueira. O próprio Caneca, recompondo sua genealogia, conseguiu descobrir que seu trisavô materno, excursionando pelos sertões, havia se consorciado com uma nativa brasileira. Registrou o frade que "essa Maria havia de ser alguma tapuia, petiguari, tupinambá, mas se foi alguma rainha Ginga, nenhum mal me faz pois já está à porta o tempo de muito nos honrarmos do sangue africano". De origens simples, o jovem Joaquim Rabelo ingressou na Ordem Carmelita aos 16 anos, nela professou em 1797 e ordenou-se padre em 1801, aos 22 anos, com uma dispensa especial em virtude da pouca idade. Era um leitor voraz, possuidor, nas palavras de Evaldo Cabral de Mello, de "um apetite enciclopédico". Por isso obteve autorização para complementar sua formação nos estudos do Seminário de Olinda, instituição fundada no alvorecer do século XIX pelo Bispo Azeredo Coutinho com um programa de ensino marcado pelo pensamento ilustrado.
Naquela instituição, valorizava-se o conhecimento com aplicação útil, e a par das discussões teológicas, eram cultivados saberes que pudessem melhorar as condições de vida da população em geral. O sacerdote ali formado deveria ministrar o alimento espiritual, mas ao mesmo tempo, zelar para que seus párocos pudessem receber os benefícios dos saberes granjeados pela razão. Um programa tão avançado de estudos permitiu que vários dos jovens formados nas colinas de Olinda abrissem seus olhos e ouvidos para as arrebatadoras idéias libertárias que emanavam da Europa, mais precisamente da França, e que chegavam às Américas de forma clandestina. Uma vez que o fogo da curiosidade começa a arder, não há maneira de fazer cessar o incêndio.
Nas reuniões secretas da maçonaria, discutia-se política abstrata e concreta. Os filósofos eram analisados e as estratégias eram traçadas para que se passasse da potência ao ato, ou seja, para encontrar meios de aniquilar o Antigo Regime. A independência dos Estados Unidos da América e a Revolução Francesa eram provas de que o sonho podia ser concretizado. A revolução do Haiti indicava que os discursos em prol da liberdade, igualdade e fraternidade podiam ter efeitos colaterais para as elites brancas escravocratas. O retrocesso ultra-conservador do Congresso de Viena demonstrava que o monstro do despotismo era como uma hidra de muitas cabeças. E Pernambuco sabia bem como era cruel esse monstro.
Sua balança comercial, superavitária, passou a ser sistematicamente saqueada pela parasitária corte portuguesa instalada no Rio de Janeiro a partir de 1808. Os ganhos auferidos com os frutos da terra, cultivados pelo braço escravo ou pelo trabalhador livre, eram vergonhosamente desbaratados por um governo incompetente que não poupava em sinecuras, prebendas, mordomias e privilégios. Nada ganhou Pernambuco com a chegada do Bragança. Antes pelo contrário, o Bragança é que tinha dívida com Pernambuco pela restauração desta terra do jugo holandês e por sua generosa devolução ao fundador da dinastia bragantina em 1654. Nada devemos ao Rio nem à sua piolhenta corte, não obstante, ironias da história, mais uma vez andamos a pagar os desmandos perpetrados por aquelas plagas.
Contra essa infame espoliação, levantou-se Pernambuco em 1817. A revolução foi longamente planejada e articulada pelos canais maçônicos nas principais praças do Brasil: Recife, Salvador e Rio de Janeiro, mas rebentou prematuramente aqui no dia 6 de março. Ao contrário do que insiste em afirmar a historiografia sudestina, 1817 não se tratou de quartelada, tiroteio ou arruaça, mas sim de uma ação concertada. A mão pesada da repressão impediu que a Bahia e o Rio de Janeiro aderissem como era previsto, mas os valorosos patriotas da Paraíba, do Rio Grande do Norte e do Crato no Ceará, não se acovardaram e fizeram tremular a bandeira da liberdade. 75 dias durou a independência da república de Pernambuco. Apesar de efêmera, a revolução pernambucana é o marco principal da luta pela independência do Brasil. Foi o único movimento anti-colonial que logrou tomar o poder em toda a história da monarquia portuguesa.
O Governo Provisório da República primou pela absoluta legalidade e publicidade de seus atos, tratando os seus governados dentro da observância dos direitos e garantias cidadãs. Convocou-se uma assembléia constituinte e definiu-se um prazo de 3 anos para a elaboração da Constituição e para a realização de eleições. Caso esse prazo expirasse sem que o objetivo fosse alcançado, a soberania retornava ao povo, considerado como sua única e legítima fonte. Lamentavelmente, essa lição tão sublime foi inúmeras vezes esquecida ao longo de nossa história.
A importância de 1817 foi minimizada pois a história da independência do Brasil foi contada pelos vencedores, e eles estavam nas províncias que mais diretamente se beneficiaram da presença da corte no Rio de Janeiro. Restou-nos a pecha de separatistas com mania de grandeza. É mister, portanto, que estejamos empenhados em combater diuturnamente esta injustiça histórica.
A repressão aos patriotas pernambucanos de 1817 foi brutal até mesmo para os padrões do antigo regime, no qual as penas deveriam ser exemplares, públicas e inspiradoras de medo nos súditos. A barbárie sanguinária da corte bragantina e de seus algozes vitimou centenas de pessoas. Muitas foram publicamente executadas e tiveram posteriormente seus corpos mutilados, sendo as cabeças e mãos exibidas por anos. Outras dezenas amargaram os calabouços fétidos em Salvador por quatro anos, até que as Cortes Constitucionais de Lisboa determinaram sua libertação em 1821. Nosso homenageado, Frei Caneca, foi um deles.
Há até hoje permanece alguma controvérsia sobre o grau de envolvimento de Caneca no movimento de 1817. A justíssima exaltação que se fez de sua figura histórica graças aos seus feitos em 1824 acabou retroagindo para o momento da insurgência libertária de 6 de março.
Sua vida antes dos momentos cruciais de 17 deixou poucos rastros. Como já foi dito, Caneca bebeu da fonte ilustrada que jorrava na Escola de Heróis, o Seminário de Olinda. Lá foi habilitado para ministrar aulas de retórica, gramática e geometria. Em determinados momentos se apresentou também como professor de história, tendo inclusive redigido uma história de Pernambuco que lamentavelmente não chegou aos nossos dias.
Quando da devassa tirada sobre o movimento de 1817, Caneca foi acusado de treinar guerrilhas e delas participar. Dele também se disse que distribuiu um poema revolucionário no dia da benção das bandeiras no campo da honra, em 2 de abril de 1817. Diziam alguns dos versos:
"Tem fim a vida daquele
Que a Pátria não soube amar;
A vida do patriota,
Não pode o tempo acabar.
Quem passa a vida que eu passo,
Não deve a morte temer;
Com a morte não se assusta,
Quem está sempre a morrer."
Acabou sendo levado preso para Salvador. Foi embarcado no Recife, após exposição à humilhação pública, acorrentado pelo pescoço juntamente com mais três prisioneiros: Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, Pedro Pedroso e o frade carmelita Luís de Albuquerque. Outras dezenas de prisioneiros caminharam pelas ruas do Recife assim, agrilhoados em quartetos e sendo alvo de cusparadas, imundícies e impropérios.
Depois a longa viagem no porão úmido e sujo de um navio, onde os prisioneiros seguiram presos ao chão, ou seja, permanentemente deitados e sistematicamente acossados por seus algozes, para que não pudessem dormir sem bruscas interrupções.
A situação não melhorou com a chegada a Salvador. Depois de nova humilhação pública o encarceramento nos horripilantes calabouços daquela cidade. A sujeira, os maus-tratos, a subalimentação não foram suficientes para sufocar em Caneca o primado da razão e a busca pelo conhecimento. Relata Muniz Tavares que nas celas da prisão formou-se uma verdadeira universidade. O carcereiro foi subornado e passou a permitir a entrada de papéis, penas de escrever e livros. Os que possuíam mais formação, passaram a compartilhar os saberes com os que desejavam se instruir. Muitos foram alfabetizados e outros aprenderam francês, inglês, matemática e gramática.
O trauma de 1817 deixou marcas muito profundas em Caneca. A violência dos dias de repressão e do cárcere lhe mostraram o lado mais cruel da estrutura social e política em que vivia o Brasil. Seus escritos da época da prisão deixam transparecer o estado depressivo no qual mergulhou:
Aponta com áureo dedo,
Fugi de mim, porque cedo
Mudar-se vereis a sorte,
Pois o meu mal é tão forte,
Que até de mim tenho medo."
Não obstante, sua atuação pública a partir de então se tornou-se cada vez mais notável. Quando do retorno dos anistiados de 1821 a Pernambuco, vivia-se um momento de grande efervescência política na província. Os pernambucanos acataram imediatamente as ordens emanadas das Cortes Constitucionais de Lisboa e elegeram em Goiana uma junta de governo para fazer frente aos planos do odiado General Luiz do Rego, o português que governava Pernambuco desde 1817. O general desejava permanecer no controle da situação, manejando uma junta de títeres debaixo de sua sombra. Com o Recife e Olinda sitiados pelas tropas da Junta de Goiana, Luiz do Rego capitulou em 5 de outubro de 1821: era a Convenção de Beberibe e Pernambuco, com a expulsão das tropas portuguesas de nosso território, adquiria na prática autonomia tanto de Lisboa como do Rio de Janeiro. Na costura política dessa ação encontramos outro participante de 1817, o comerciante Gervásio Pires Ferreira.
Não obstante, a alternativa pernambucana para a construção do Estado brasileiro independente, ou seja, com um regime republicano e federativo, acabou sendo suplantada pelo projeto monárquico do Rio de Janeiro. Dois fatores pesaram nessa equivocada escolha: o primeiro foi o temor das elites escravocratas locais de que uma nova ordem republicana não mantivesse a escravidão, o comércio atlântico de escravos e a ordeira submissão das classes populares. Temia-se um novo Haiti. O segundo foi o juramento de Pedro de Alcântara como defensor do Brasil e da ordem constitucional e a convocação de uma Assembleia Constituinte, um verdadeiro alçapão de pegar pernambucano.
As desordens estimuladas pelos correligionários do jovem príncipe no Recife surtiram efeito, derrubando a junta de Gervásio e inclinando a balança para o Rio de Janeiro. Apesar disso o reconhecimento de Pedro como imperador recebeu uma fria, para não dizer gélida, acolhida no Recife. Pedro I comemorou a adesão da principal província do norte do Brasil gritando da varanda do paço imperial: "Pernambuco é nosso!"
Mas as inclinações despóticas do imperador não tardaram em se manifestar. Além de acalantar o projeto de reunir novamente Portugal e Brasil quando chegasse a hora de herdar a coroa de Dom João VI, Pedro I rasgou a ordem constitucional. Em 12 de novembro de 1823, num golpe político, a Assembleia Constituinte foi fechada e os parlamentares devolvidos às suas províncias. A notícia caiu no Recife como gasolina em fogueira. O clima político já era de total agitação. A junta que sucedera a Gervásio, denominada "governo dos matutos" e liderada pelo senhor de engenho Francisco Paes Barreto – o morgado do Cabo – não conseguia atender aos anseios de nenhuma das parcialidades em conflito no Recife. O temor da explosão de uma rebelião de negros e pardos era constante, ao mesmo tempo que a comunidade portuguesa era permanentemente acusada de conspirar contra a independência do Brasil.
Nesse contexto, no final de 1823 demitiu-se a junta governativa. Paes Barreto declarou perante o conselho reunido que não tinha mais condições de governabilidade. Foi eleito então como presidente provisório da província Manuel de Carvalho Paes de Andrade, homem de ideais libertários e vinculado aos fatos de 1817.
Frei Caneca passa então para a frente do palco da história. Em 25 de dezembro de 1823 saiu o primeiro número do seu jornal cujo nome era Typhis Pernambucano, que teria a partir daí 30 números, o último deles publicado em 5 de agosto de 1824. Seu principal objetivo: formular por escrito e publicamente a resposta para a traição do juramento de Pedro I com sua guinada absolutista e veicular uma proposta de construção do Estado brasileiro pautada pela ordem constitucional. A opinião de Frei Caneca passou então a influenciar diretamente as decisões locais.
Quando o Imperador ignorou a escolha de Paes de Andrade como presidente e decidiu nomear Paes Barreto, o conselho reunido solicitou, escutou e acatou o voto de Caneca. Citando Platão, afirmou o carmelita:
"Os povos não subsistem para comodidade e divertimento dos reis, sim os reis para felicidade e conservação dos povos. É por essa razão e por outras mais que apresentei, que digo por fim: não se deve dar posse a Francisco Paes Barreto!".
Os partidários de Paes Barreto e do Imperador passaram a organizar tropas em Alagoas para atacar Pernambuco. Surgiu então a proposta de se retaliar preventivamente a antiga comarca para evitar a repetição do que ocorrera em 1817. A quem se pediu opinião? Ao Frei Caneca, que assim se manifestou:
"Quando no fatal ano de 1817, Pernambuco proclamou a separação de Portugal e o regime democrático, o governo da Bahia, sem esperar ordens superiores, o declarou logo rebelde, e tomou uma atitude hostil, mandando invadir com forças terrestres e bloquear o porto com naves. (...) o meu voto é que se invada já o território das Alagoas, não só para prender o morgado do Cabo e seus satélites, mas também para fazer que os povos daquela província elejam outro que seja amante e defensor da independência do Império e de sua constitucionalidade."
Fechada a Constituinte, Dom Pedro I, assessorado por um punhado de áulicos, elaborou uma Constituição que, mediante um quarto poder, o Moderador, dava ao monarca atribuições muito mais amplos do que qualquer regime verdadeiramente constitucional podia tolerar. O texto foi enviado às câmaras municipais para ser aprovado e jurado. Reunidas em conselho, as câmaras do Recife e de Olinda solicitaram o voto de Caneca. O carmelita atacou o quarto poder e o texto produzido por Pedro I, classificando como contrário às liberdades cidadãs, à independência e aos direitos do Brasil, além de ter sido apresentado por alguém que não tinha autoridade para isso. Acusou ainda o imperador de perjúrio por quebrar seu voto de obediência às cortes constitucionais. O voto de Caneca concluiu-se da seguinte forma:
"Por todas estas razões que eu sou de voto que se não adote e muito menos jure o projeto de que se trata, por ser inteiramente mau, pois não garante a independência do Brasil, ameaça sua integridade, oprime a liberdade dos povos, ataca a soberania da nação, nos arrasta ao maior dos crimes contra a divindade, o perjúrio, e nos é apresentado de maneira coercitiva e tirânica."
A resistência de Pernambuco e a manutenção de Paes de Andrade como presidente da província levaram o Imperador a tentar impor pela força sua vontade. Duas fragatas de guerra foram enviadas para o Recife sob o comando do mercenário inglês John Taylor. Reuniu-se uma vez mais o grande conselho, e após as exposições de Taylor e de Paes de Andrade optou-se pela manutenção do presidente eleito. Pedro I nomeou então José Carlos da Silva Ferrão Mayrink como uma terceira via para dirimir o conflito. No entanto, a 6 de junho de 1824, mais uma vez o grande conselho confirmou Paes de Andrade na sua posição de presidente da província. A tensão aumentava a cada dia e diante da briga dos brancos, negros e pardos também se mobilizavam guiados por líderes radicais como o Major Mundurucu.
No dia 11 de junho, Dom Pedro I enviou proclamações para as províncias do norte alertando sobre uma possível invasão de tropas portuguesas para recolonizar o Brasil. As fragatas que bloqueavam o porto do Recife foram convocadas de volta ao Rio de Janeiro para dar segurança à corte. A 1o de julho zarparam para o sul. Aos desgraçados brasileiros do norte restou a sugestão do Imperador: que se destruísse tudo no litoral e que as populações buscassem refúgio no interior do país. Que horrendo papel desempenhava assim aquele que um dia jurou mentirosamente ser o defensor perpétuo do Brasil!
Diante da covardia despótica do Imperador, não restava outra opção a Pernambuco que não fosse liderar um projeto alternativo de nação brasileira. A 2 de julho, Paes de Andrade proclamou a formação da CONFEDERAÇÃO DO EQUADOR, conclamando os brasileiros a se unirem em torno de um projeto republicano, constitucional e federativo, tal como fora implementado nos Estados Unidos da América. Não se trata, a meu ver, de um ato de separatismo, embora isso tantas vezes tenha sido dito. O monarca rompera os seus juramentos e abandonara os seus súditos à sua própria sorte. Nada mais legítimo que estes súditos, vendo roto o contrato estabelecido com seu monarca, optassem com base na soberania dos povos por outro regime de governo. Pernambuco naquele momento apresentou aos brasileiros um projeto alternativo que pudesse substituir o modelo arcaizante imposto por Pedro I e pelo Rio de Janeiro. Houvessem as elites locais e das províncias do sul aderido ao projeto republicano, constitucional e democrático gizado por Caneca, e teríamos experimentado um desenvolvimento histórico bastante distinto.
O carmelita passou a ser um dos mais ativos membros do governo da Confederação. Seus escritos atiçavam o fogo do civismo. E como era avançada sua visão de nação! Declarou Caneca: "Governe quem governar, seja nobre ou mecânico, rico ou pobre, sábio ou ignorante, da praça ou do mato, branco ou preto, pardo ou caboclo, só há um partido que é o da liberdade civil e da felicidade da pátria; tudo o que não for isto, há de ser repulsado a ferro e fogo."
O governo da Confederação do Equador convocou uma Assembleia Constituinte e assumiu provisoriamente a carta da Colômbia como lei geral. A traição do Imperador carreou o apoio ao movimento pernambucano, porém, a decisão de abolir o tráfico de escravos, custou a Paes de Andrade a animosidade de comerciantes de escravos e grandes proprietários rurais. Mais uma vez as questões ligadas à escravidão tiveram grande peso.
A 18 de agosto de 1824 a frota imperial retornou, dessa vez comandada por Lord Cochrane. Por terra vinham forças comandadas por Francisco de Lima e Silva. A chegada das tropas imperiais desatou uma encarniçada luta nas ruas do Recife e nos seus arredores. Forçada pela situação, as tropas pernambucanas recuaram para o interior e o Presidente Paes de Andrade buscou asilo numa embarcação inglesa. As tropas confederadas empreenderam então uma marcha para o sertão, em busca de uma união com as tropas cearenses para manter a resistência. Ao longo da retirada, Caneca continuou escrevendo, registrando as ocorrências e também observações sobre as povoações e paisagens. Enfrentando condições duríssimas e renhidos combates, a tropa acabou se rendendo em 29 de novembro de 1824. Nessa decisão, Frei Caneca foi voto vencido. O carmelita jamais confiou nas promessas de garantias dadas pelos repressores. E ele, mais uma vez, estava certo. Todas as promessas de clemência foram esquecidas e Caneca visitou mais uma vez o inferno dos calabouços da tirania.
Formou-se uma Comissão Militar para realizar o julgamento de Caneca. Mesmo sabendo que o jogo era de cartas marcadas, o carmelita elaborou sua defesa, deixando o registro da bestialidade de seus acusadores. A 26 de dezembro de 1824 foi proferida a sentença de morte de Frei Caneca. A execução entretanto, somente se daria no dia 13 de janeiro de 1825. Nesse dia foi levado em cortejo pelas ruas do Recife. De nada valeram os pedidos de clemência feitos pelos religiosos de várias ordens. Na Igreja do Terço foi desautorado, sendo despido de seus paramentos. Não havendo carrasco que se dispusesse a enforca-lo, teve sua pena modificada para arcabuzamento. Formado o pelotão, diz a tradição que um dos soldados caiu morto. A multidão se agitou com tal presságio. Rearticulado o pelotão, dada a ordem de fogo, os tiros são disparados fulminando o mártir da liberdade.
Os vencedores do sul negaram a Frei Caneca o seu lugar no panteão dos heróis nacionais, escolhendo em seu lugar uma figura inexpressiva para o papel de mártir da independência do Brasil. Mas eles não conseguiram extinguir a memória deste notável pernambucano. Não conhecemos o seu rosto real, mas seus escritos sobreviveram como testemunho do arrojo de suas ideias. Entre nós ainda circula o seu sangue, tanto no sentido figurado, como no sentido real, pois o carmelita, tendo sido pouco ortodoxo no que tangia ao seu voto de castidade, deixou no Recife descendência. Apesar do amor à sua Marília e dos cuidados que expressa com seus rebentos, Caneca optou pela luta em defesa da liberdade. Depois de condenado à morte escreveu: "Entre Marília e a pátria, coloquei meu coração // A Pátria roubou-mo todo, Marília que chore em vão".
Vivemos dias conturbados nos quais perigam as garantias cidadãs e a democracia representativa; o pacto federativo continua imperfeito mimando os que tem muito, e penalizando os que tem pouco; e uma sociedade mesmerizada por um absurdo imediatismo pragmático e consumista despreza sistematicamente as lições que a história nos dá. Nestes nossos dias críticos, o exemplo de Caneca é mais que necessário. Deixemos que sejam dele as últimas palavras desta oração:
"Firme neste princípio, eu levanto a voz do fundo da minha pequenez, e te falo, oh Pernambuco, pátria da liberdade, asilo da honra e alçar da virtude! Em ti floresceram os que fizeram tremer a Holanda, e deram espanto ao mundo universo; tu me deste o berço, tu ateaste no meu coração a chama celeste da liberdade, contigo descerei aos abismos da perdição e desonra, ou, a par de tua glória voarei à eternidade!"
Viva a Pernambuco! Viva a Democracia! Viva a Liberdade! Viva FREI CANECA!
[1] Doutor em História pela Universidade de Salamanca. Presidente do IAHGP. Professor do Departamento de História da UFPE.